sexta-feira, 25 de abril de 2014

Deus apertou contra o peito a criança morta, e ela ganhou asas

E foi assim que a Letícia ganhou asas e se tornou uma anjinha...

“Cada vez que morre uma boa criança, um anjo de Deus desce a terra, toma-a morta em seus braços, abre as grandes asas brancas, voa por todos os lugares que a criança gostou, e colhe um punhado de flores que leva a Deus, para que lá vivam mais viçosas, ainda mais lindas que na terra. O bom Deus aperta as flores contra o coração, e beija a que lhe é mais querida, fazendo-a adquirir a voz e cantar no coro da grande bem-aventurança.”

Tudo isso contava um anjo de Deus a uma criança morta, enquanto a levava para o céu, e a criança tudo ouvia, como num sonho. Passaram pelos lugares em que o pequeno gostava e por jardins com lindas flores.

- Quais levaremos para plantar no céu? – perguntou o anjo.

Viram uma bela roseira, cujo tronco, mão malvada havia quebrado, de maneira que todos os seus ramos com lindos botões entreabertos pendiam quase murchos.

- Pobre roseira! - exclamou a criança - Vamos levá-la, para que floresça lá no alto, junto a Deus.

O anjo levou a planta e beijou a criança que abriu um pouco os olhos. Também escolheram algumas flores magníficas, mas também levaram a singela margaridinha e o amor-perfeito.

- Agora, sim, temos flores - disse a criança.

O anjo fez com a cabeça um sinal de assentimento, mas ainda não voaram para o céu, rumo a Deus. Era noite, e o silêncio era completo. Ficaram na grande cidade, percorrendo uma das ruas mais estreitas, onde existiam montes de palha, cinza e lixo. Fora dia de mudança, e viam-se esparramados pelo chão cacos de louça, fragmentos de gesso e trapos, enfim, coisas sem valor.

No meio daquela desordem o anjo apontou uns cacos de barro e um pedaço que se desprendera do vaso e estava preso às raízes de uma flor campestre, seca, que não valia nada e foi jogada na rua.

- Vamos levá-la - disse o anjo – vou contar-te a história dela enquanto voamos para o alto.

Voaram para o alto e o anjo contou:

- “Lá em baixo, numa estreita viela, morava, num porão baixo, um menino pobre e doente. Desde pequeno vivia preso ao leito. Nos seus dias melhores, podia, quando muito, de muletas, andar umas poucas vezes de um lado para o outro em seu pequenino quarto, e mais nada. Uns poucos dias no ano, no verão, os raios do sol atingiam durante meia hora o porão; e quando o menino recebia o calor deles e via o sangue vermelho em seus dedos transparentes, que erguia em frente do rosto, dizia: ‘Hoje, ele saiu’. Só conhecia a mata em seu verde primaveril, porque o vizinho lhe trazia o primeiro ramo da faia. Segurava o galho sobre a cabeça e sonhava que estava sentado embaixo das árvores, onde brilhava o sol e cantavam os pássaros. Num dia da primavera, o filho do vizinho trouxe-lhe também algumas flores do campo e, entre elas, havia por acaso uma com raízes. Foi plantada num vaso de barro e colocada na janela, bem perto de sua cama. A flor foi plantada por uma mão feliz, e cresceu, deitou novos ramos e todos os anos deu lindas flores. Tornou-se o pequeno jardim do menino, seu maior tesouro na terra. Ele molhava-a, cuidava dela zelando para que ela recebesse todos os raios do sol, até o último deles que penetrava pela janelinha baixa. A flor povoou seus sonhos, pois só para ele crescia e derramava seu aroma, alegrando-lhe os olhos. Para ela voltou-se ele na morte, quando o Senhor o chamou. Faz agora um ano que está com Deus. Um ano inteiro a flor foi esquecida na janela. Secou, e por isso foi atirada ao monte de lixo, por ocasião da mudança. Ela é a flor pobre e murcha que levamos no buquê; causou mais alegrias do que a flor mais preciosa causaria na rainha.”

- Mas como sabe de tudo isso? - perguntou a criança que o anjo ia levando para o céu.

- Eu o sei – respondeu o anjo - porque aquele menino doente, que andava de muletas… era eu mesmo. Não podia deixar de reconhecer minha flor!

A criança abriu os olhos e fitou o rosto radiante e belo do anjo. Naquele mesmo instante chegavam ao céu, onde havia alegria e ventura. Deus apertou contra o peito a criança morta, e ela ganhou asas como o outro anjo. Os dois saíram então voando de mãos dadas. Deus apertou todas as flores contra o coração e beijou a pobre flor murcha, a qual recebeu voz e cantou em coro, com todos os anjos que rodeavam o Senhor, alguns bem perto, outros em torno dos primeiros, em grandes círculos, sempre mais distantes, até o Infinito, mas todos igualmente felizes. E todos cantavam, grandes e pequenos, em louvor da boa e abençoada criança e da pobre flor campestre, atirada à lata do lixo, entre detritos, no beco estreito e escuro."

Extraído do livro Contos de Andersen. São Paulo: Paz e Terra, 1988.Extraído do livro Contos de Andersen. São Paulo: Paz e Terra, 1988.



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